quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Ética_Identidade



Questão de método
Repórter que usa falsa identidade engana a fonte e comete crime

Disfarçar-se para obter informações é um método inaceitável de fazer jornalismo

Volta e meia, repórteres fazem-se passar por outro tipo de profissional para obter informações que não obteriam se identificassem como jornalistas. Repórteres se fazem de estudantes para comprar diplomas falsos. Passam por motoristas de táxi para documentar agruras da profissão. Mentem ao telefone querendo informações sobre empresas privadas. Um exemplo famoso foi os dos repórteres Xico Sá e Vicente Duarte, que compraram bônus eleitorais do Partido Liberal e provocaram a renúncia do então candidato à Presidência da República Flávio Rocha. Com a reportagem, os dois bons repórteres ganharam o prêmio interno de jornalismo da Folha. Na TV, o disfarce virou quadro do Fantástico, da Rede Globo, onde, na época, o repórter Tim Lopes mostrava histórias da gente das ruas com uma câmera escondida. Vendedores ambulantes, transeuntes, moradores dos morros participam das reportagens - boas reportagens - sem saber que estão sendo entrevistados e vão sair na televisão. A questão é: pode-se enganar fontes e personagens fazendo-se passar pelo que não é para obter notícias?

Tanto a reportagem dos bônus eleitorais como os flagrantes do Fantástico são excelentes reportagens, mas o método é duvidoso. Rigorosamente, a falsa identidade é crime, descrito no artigo 307 do Código Penal, e isso bastaria para que as empresas de comunicação investissem em outros meios de obter reportagens que não violem as leis do país. É esquisito repórter usar mentira deliberada para obter a verdade. Um repórter pode tornar-se criminoso para denunciar um criminoso? A imprensa pode cometer crimes a pretexto de denunciar outros?

Os americanos já debateram a “reportagem disfarçada” com resultados construtivos. Parece consolidar-se nos Estados Unidos o consenso de que mais vale investir em tempo e estratagemas para obter a reportagem por meios lícitos do que violar as leis e enganar pessoas. Um dos casos de disfarce de maior repercussão na imprensa dos Estados Unidos ocorreu no Chicago Sun Times, que quase venceu o Prêmio Pulitzer de 1979 por uma reportagem em que dois repórteres, disfarçando-se de comerciantes, montaram um taberna chamada de Mirage e comprovaram extorsão dos fiscais da prefeitura de Chicago. Os repórteres Pamela Zekman e Zay N. Samith publicaram a matéria durante quatro semanas. Mas, em meio a um debate liderado por Benjamin Bradlee, o diretor de redação do Washington Post que bancou a investigação do Caso Watergate, a comissão final do Pulitzer tirou o prêmio do Sun Times.

Os jornalistas alegaram que legalmente não mentiram nem usaram um disfarce - eram donos e administravam a mercearia. Mas um dos membros da Comissão do Pulitzer, Eugene C. Patterson, diretor do St. Petersburg Times, saiu com outro argumento: “Na minha opinião, o trabalho duro e o gasto de muitos sapatos poderiam realizar a história do Mirage e muitas outras histórias disfarçadas. E sinto ainda que a imprensa como um todo paga um preço em credibilidade quando o jornal, editorialmente, exige que o governo aja de uma maneira aberta, sem truques, e se mostra disposto, depois, a esconder a verdade ou a mascarar seus motivos nos seus próprios métodos de operação, em circunstâncias tais que exigem uma decisão política do editor”.

Em outro jornal americano, o Sacramento Bee, ocorreu, nos anos 70, um caso tragicômico. O repórter George Williams internou-se num hospital psiquiátrico público para fazer uma reportagem sobre os métodos de tratamento. Ninguém no hospital sabia que ele era jornalista. Enquanto off se fazia de louco, entrou no jornal um editor que era contra o disfarce, e decidiu deixar o repórter lá. “Tivemos um trabalhão para retirar o repórter do hospício. Desde então, nunca mais tivemos qualquer projeto de reportagem disfarçada”, contou Art Nauman, ombudsman do Bee. (As histórias estão narradas no livro Procura-se Ética no Jornalismo, de H. Eugene Goodwin. A.M. Rosenthal, ex-editor do New York Times, também é contra jornalista mentir para obter informações. “Exigimos os direitos e os privilégios da Primeira Emenda [dispositivo que garante a inviolabilidade da liberdade de imprensa nos EUA] e depois assumimos papéis dúbios, fazendo-nos passar por pessoas diferentes daquilo que somos. Dizer que assim se consegue uma história melhor ou que se serve melhor o público, não muda nada. Ainda está errado”.

Mas há um tipo de reportagem - a de aferição de serviços pagos - em que o jornalista não deve se identificar. É o caso dos críticos de restaurante. Eles não fazem reserva em seu nome e ao chegar não se anunciam para não receber privilégios. Se souber que o turnedô vai virar notícia de jornal, o restaurante pode caprichar e dar a impressão de que aquele é um serviço padrão. Manter-se incógnito também seria boa prática nas reportagens para os cadernos de turismo. Se vai descrever um cruzeiro, um hotel nas montanhas ou um excursão de compras, os repórteres desses cadernos também deveriam não se identificar como jornalistas, se isso significar serviço privilegiado. No Brasil, porém, a prática é rigorosamente inversa: o repórter viaja com um carimbo na testa pela simples razão de que a maioria das reportagens são patrocinadas pelos donos de hotéis, companhias aéreas ou agências de viagem.

Fonte: Instituto Gutenberg

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